“A prisão mental do populismo argentino”

“Após as primárias argentinas de agosto apontarem para a possibilidade de volta do kirchnerismo ao poder, esperava-se que o aviso servisse para acordar o país sobre os efeitos desastrosos da política econômica imposta à Argentina por Cristina Kirchner, a candidata à vice na chapa peronista encabeçada por Alberto Fernández. O alerta foi ouvido pela metade: o atual presidente, Mauricio Macri, saltou de 32% nas primárias para 40%, mas o aumento não foi suficiente para derrotar Fernández, que manteve a votação das primárias e conseguiu 48% dos votos válidos e conseguiu a vitória no primeiro turno – pelas regras argentinas, basta superar os 45% de votos válidos. O resultado e todas as circunstâncias que levaram a ele são prova de como o populismo, uma vez incrustado em uma sociedade, torna-se uma prisão mental da qual é muito difícil escapar.

Os dois mandatos de Cristina Kirchner foram um desastre econômico em todos os aspectos. O país se viu praticamente isolado do mundo em termos financeiros, tendo declarado moratória em 2014 e adotando uma política radical de protecionismo e controle cambial. A vida de importadores e de cidadãos interessados em comprar dólares para viajar ao exterior ou em adquirir produtos estrangeiros pela internet se tornou um inferno burocrático. O mercado paralelo de dólar apresentava cotações muito mais altas que o mercado oficial, e mesmo assim os argentinos se dispunham a pagar o ágio ou a fazer saques no vizinho Uruguai. As restrições às importações e as intervenções no mercado interno, chegando até mesmo à nacionalização de empresas, levaram ao desabastecimento de itens básicos – ainda que não na mesma intensidade observada na Venezuela. A manipulação das estatísticas de inflação tornou impossível confiar nos dados oficiais, e chegou a haver perseguição judicial contra economistas independentes que apresentavam suas estimativas para a disparada nos preços.”

“Mesmo a moderação prometida por Fernández ainda está longe de permitir à Argentina fugir das consequências econômicas do peronismo”

“Como é possível que a autora desta calamidade esteja de volta ao governo, ainda que em um papel – na teoria – de coadjuvante? É bem verdade que uma parcela do eleitorado continua rejeitando a ex-presidente, que, além de causadora do desastre econômico, ainda acumula alguns processos contra si. “

“Fernández apareceu como alternativa para estes argentinos alinhados ao peronismo, com uma promessa de um governo mais de centro-esquerda, sem os radicalismos da antecessora e futura vice. Mas apenas a transição, a montagem do gabinete e o início do governo mostrarão quem realmente deve dar as cartas nos próximos quatro anos.

Macri, por sua vez, não ajudou a se estabelecer como alternativa viável ao populismo peronista. Ele tirou o país do default e o reconectou ao sistema financeiro internacional, mas não avançou na agenda liberal nem na velocidade nem na intensidade necessárias para tirar o país da crise profunda legada por Cristina Kirchner. Não realizou o ajuste fiscal necessário para tirar a Argentina do atoleiro, evitou privatizações e não enfrentou o corporativismo dos servidores públicos. Como resultado, o gasto público continuou descontrolado, com todas as consequências já conhecidas, como a persistência da inflação, agravada pelo fim das manipulações de preços nos serviços públicos. Ainda antes das primárias, Macri abandonou de vez o ideário liberal quando resolveu coibir o aumento de preços por meio de um congelamento. Com a derrota de agosto, o presidente adotou um pacote de subsídios, redução de impostos e pagamento de abonos a trabalhadores. Também não funcionou: populismo por populismo, os argentinos acabaram escolhendo os populistas originais neste domingo – e, nesta segunda-feira, o Banco Central já impôs fortes restrições à compra de dólares para evitar que a reação do mercado ao resultado da eleição desvalorize ainda mais o peso.


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