“Ensino remoto”, ou “digital”, ou em “home office”? Como assim, se a grande massa de crianças não tem acesso normal à internet?

J.R. Guzzo

(Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 26 de setembro de 2021)

A farsa da educação à distância

É provável que nunca se consiga fazer uma avaliação verdadeira da tragédia que “autoridades locais”, médicos de comitê e especialistas de todos os tipos, com o apoio maciço dos “formadores de opinião”, construíram para as crianças e os adolescentes deste País. Sabe-se bem o que fizeram: fecharam e mantiveram fechadas por mais de um ano as escolas dos cursos básicos, sobretudo na educação pública. Jamais se saberá quanta miséria criaram com isso para o futuro das vítimas – mesmo porque nenhum pesquisador, pelo que se vê por aí, tem ou terá o mínimo interesse em mexer com essas coisas. Mas pode-se dizer desde já, e para sempre, que a mentira contada pelos fechadores de escola – os alunos iriam receber “ensino remoto” – era apenas isso, uma mentira, e essa mentira está em ruínas.

“Ensino remoto”, ou “digital”, ou em “home office”? Como assim, se a grande massa de crianças não tem, simplesmente não tem, acesso normal à internet? Se, muitas vezes, não tem nem sequer um computador em casa? Um editorial recente de O Estado de S. Paulo deixa mais evidente do que nunca este absurdo em estado puro. Apenas 30% dos brasileiros adultos, informa-se ali, têm acesso pleno à internet. Pior: pouco mais de um terço da população não tem acesso nenhum. Pense um minuto nesse número. Ele quer dizer que 70 milhões de pessoas – isso mesmo, 70 milhões de seres humanos, que podem ser vistos diariamente pela janela dos SUVs da classe média alta – não usam internet. Não estão “conectados”. Não fazem “home office”. Não compram “online”. Vivem no mesmo mundo que você, mas estão na Idade da Pedra. Equivalem à população total da França. Entre os dois extremos estão os que têm conexão apenas “intermitente”, ou estão “conectados parcialmente” – ou seja, não podem usar a internet como se faz em qualquer país minimamente bem-sucedido deste mundo.

O editorial de O Estado revela um escândalo perverso – o que pode haver de mais devastador do que isso, em matéria de desigualdade, injustiça e destruição de oportunidades? Não haverá, é claro, nenhuma CPI com manchetes diárias ou senadores promovidos a “heróis da democracia” para denunciar esse escândalo – a melhor razão, aliás, pela qual o escândalo existe e continuará existindo. É importante que se diga, de qualquer forma, que o rei está nu. O Brasil das classes médias para cima finge que vive num país com “instituições”, onde as agências de publicidade promovem a “diversidade” e o Supremo Tribunal Federal é uma trincheira dos valores democráticos. Discute um candidato “equilibrado”, limpo e social-democrata para as eleições de 2022. Fica preocupado porque o presidente da República come pizza de pé em Nova York. É advertido sobre o perigo das “fake news”. Enquanto isso, no mundo real, o brasileiro comum vê a sua vida ir embora, dia após dia, sem receber a menor oportunidade de melhorar em alguma coisa a miséria na qual está enfiado.

A desgraça digital deste Brasil que faz 70 milhões de pessoas serem cidadãos de terceira classe, num momento em que a humanidade caminha para a inteligência artificial e outras maravilhas, mostra com muita precisão os extremos de hipocrisia em que está metida a nossa vida pública, cultural e social. Como falar em “ensino a distância” se não há internet – e isso num país que está precisando, desesperadamente, melhorar o seu sistema de educação pública? Como, nesta situação, falar em “inclusão social”? Como falar em “valores democráticos” se a desigualdade absoluta anula qualquer significado prático para a palavra “democracia”? Como falar em “programas sociais”, ou em um pouco mais de bem-estar para a maioria? É tudo uma farsa gigante.

R. OESTE

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