Por 140 votos a favor e 21 contra, o Parlamento da Hungria deu um passo definitivo rumo à chamada democracia iliberal defendida pelo primeiro-ministro Viktor Orbán, ao aprovar uma emenda constitucional que fixa na Carta Magna a existência de apenas dois gêneros — masculino e feminino — e proíbe reuniões de pessoas LGBTQIAPN+. Entre os eventos vetados, está a Parada do Orgulho, sob a justificativa de “proteção da infância”.
“A emenda constitucional agora é lei. Estamos protegendo o desenvolvimento das crianças, afirmando que uma pessoa nasce homem ou mulher, e nos mantendo firmes contra as drogas e a interferência estrangeira. Na Hungria, o bom senso importa”, escreveu Orbán na rede social X. O Fidesz, partido de extrema direita do premiê, votou em peso a favor da emenda.
O novo texto estabelece multa equivalente a R$ 3,2 mil a quem participar dos eventos LGBTQIAPN+ proibidos. A lei autoriza o uso de tecnologia de reconhecimento facial para identificar as pessoas que estiverem nos eventos. No mês passado, Orbán prometeu uma “grande limpeza de Páscoa”. A votação de ontem transcorreu em clima tenso. Manifestantes bloquearam a entrada do Parlamento e foram retirados à força pela polícia.
Dentro do prédio, deputados exibiam uma faixa de protesto com a frase “Todos vocês podem nos banir (do Parlamento), mas não a verdade. Do lado de fora, os ativistas gritavam: “Não permitiremos que a Hungria se torne a Rússia de (Vladimir) Putin”.
Tamás Dombos, coordenador de projetos da Sociedade Háttér, a mais antiga e maior organização LGBTQIAPN+ da Hungria, afirmou ao Correio que as duas emendas são muito nocivas. “Uma delas estabele que ‘um ser humano é homem ou mulher’ e que ‘o direito da criança à proteção e ao cuidado prevalece sobre todos os outros direitos fundamentais, à exceção do direito à vida’. A primeira visa, segundo a justificativa oficial, proibir constitucionalmente o reconhecimento legal de gênero para pessoas transgênero, proibido desde 2020, mas também nega a existência de pessoas intersexo”, comentou. “A segunda serve como base constitucional para proibir as Paradas do Orgulho — projeto de lei adotado sem qualquer debate sério pelo Parlamento, em um procedimento extraordinário de menos de 48 horas, em 18 de março. Juntas, as emendas restringem os direitos fundamentais à liberdade de reunião e à dignidade humana, além de introduzirem uma linguagem ainda mais estigmatizante e discriminatória na lei fundamental.”
Reeleição
Dombos vê as emendas como parte da estratégia de Orbán para a reeleição, em 2026. “Um partido da oposição lidera as pesquisas; a campanha começou. Orbán emprega a velha estratégia política, que usou algumas vezes: escolhe uma comunidade vulnerável (sem teto, ciganos, migrantes e LGBTQI+), a rotula como uma ameaça à nação e defende que os partidos governistas são os únicos que podem salvar os húngaros”, explicou. “Infelizmente, funciona bem no núcleo do eleitorado do Fidesz (pessoas idosas, da zona rural e iletradas). Colocar o foco na comunidade LGTBQI+ desvia as discussões políticas de temas como educação, saúde e economia.”
Finalista do concurso Mister Gay Europe 2025, que ocorrerá em 1º de agosto, na Holanda, o húngaro Robert Antic, 37 anos, disse ao Correio que a emenda é um “sério retrocesso”. “Ela não apenas prejudica os direitos das pessoas LGBTQIAPN+, mas ataca direitos humanos básicos, como a liberdade de expressão e as reuniões pacíficas”, explicou. “Ao proibir eventos com a desculpa de ‘proteger crianças’, o governo está disseminando o medo e tentando silenciar a comunidade, em vez de apoiá-la.”
De acordo com Antic, a nova lei viola as promessas da Hungria de proteger os direitos de todos. “Envia uma mensagem perigosa de que ser LGBTQIAPN+ é algo errado. Impedir as pessoas de mostrarem quem são é opressão, não proteção”, advertiu. Ele se disse incomodado pela ideia de rastrear pessoas em eventos por meio da tecnologia facial. “Não se trata mais apenas de leis, mas de controlar e de vigiar as pessoas.”
O finalista do Mister Gay Europe 2025 alerta que, ao estabelecer apenas dois gêneros como identidade sexual, a emenda ignora e apaga as pessoas transgênero e intersexo. “Ela tenta controlar quem pode ser visto em público e quem não pode”, disse Antic.
“A mensagem geral é de que as pessoas LGBTQIAPN+ são cidadãos de segunda classe. Isso contribui para a disseminação de preconceitos e estereótipos contra pessoas LGBTQI+, cria problemas cotidianos para pessoas trans e intersexo (sem reconhecimento legal de gênero, elas enfrentam discriminação em todas as áreas da vida, incluindo a procura de emprego, o acesso a cuidados de saúde ou até mesmo o pagamento com cartão de banco) e torna o ativismo muito mais difícil, pois assembleias que chamam a atenção para essas questões podem ser proibidas pela polícia.”
Tamás Dombos, coordenador de projetos da Sociedade Háttér, a mais antiga e maior organização LGBTQIAPN+ da Hungria
“Viktor Orbán está usando as pessoas LGBTQIAPN+ como um meio de desviar o foco dos problemas maiores na Ucrânia. Ele cria um ‘inimigo em comum’ para fazer parecer com que esteja protegendo os ‘valores tradicionais’ e ganhar apoio dos eleitores conservadores. Mas isso machuca gente de verdade. Traz ódio e separa a Hungria dos valores democráticos da Europa.”
Robert Antic, 37 anos, húngaro, finalista do Mister Gay Europe 2025
Correio Braziliense