“Quem sou eu para julgar?” A frase, com a qual Francisco respondeu a uma pergunta sobre a homossexualidade, define a forma como o papa tentou lidar com as necessidades conflitantes de atualizar as posições da Igreja diante das mudanças de valores e preservar os dogmas católicos.
Pouco depois de ser sagrado papa, em 2013, o pontífice voltava de uma viagem ao Brasil, onde participou da Jornada Mundial da Juventude, quando lhe perguntaram, no voo, sobre padres homossexuais. “Se uma pessoa é gay, busca a Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?”, reagiu.
A atitude de amor, tolerância e acolhimento, que o papa associava ao testemunho de Jesus Cristo, também norteou a posição dele em relação a outros temas espinhosos para a Igreja, como o direito ao aborto e a ordenação de mulheres. Mas sem propor explicitamente uma mudança na doutrina.
O momento da morte do papa teve enorme simbolismo religioso e político. Religioso, por ter ocorrido horas depois da celebração da Páscoa, da qual ele se esforçou por participar, contra a recomendação dos médicos. Político, porque a última autoridade que ele recebeu foi o vice-presidente americano, JD Vance, cuja visão dos valores cristãos e católicos diverge fundamentalmente da do papa.
Vance se converteu ao catolicismo em 2019, por se identificar com as posições mais conservadoras da Igreja Católica contra o aborto, por exemplo, em comparação com algumas correntes protestantes. O hoje vice-presidente também mencionou sua adesão ao conceito de “ordo amoris” (ordem do amor, em latim).
Proposto por Santo Agostinho, o conceito sugere uma hierarquia do amor, que depois Santo Tomás de Aquino interpretou como uma distribuição concêntrica dele. Vance diz que “a extrema esquerda perverteu esse amor”, ao se preocupar menos com a família — ou o conceito que ele tem dela – do que com quem vem de longe, como os imigrantes, por exemplo.
“Você ama sua família, depois seu vizinho, sua comunidade, seus concidadãos, e só então pode focar e priorizar o resto do mundo”, defendeu o vice americano.
Francisco contestou essa interpretação numa carta enviada aos bispos americanos em fevereiro, na qual argumentou que o amor cristão não deve ser visto como uma expansão concêntrica de interesses que se amplia gradualmente para outras pessoas e grupos, mas que o verdadeiro “ordo amoris” é aquele descoberto na meditação constante da parábola do Bom Samaritano, ou seja, um amor que constrói uma fraternidade aberta a todos, sem exceção.
O pai de Jorge Mario Begroglio, o nome de batismo do papa, era imigrante: ele veio da Itália com os pais. Seu avô lutou na Primeira Guerra Mundial. Nascido em 1936, sua infância foi profundamente impactada pela Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939, pelo Holocausto e pela imigração de judeus para a Argentina.
Com base no seu convívio com os imigrantes em Buenos Aires, o papa escreveu em seu livro “Vida: Minha História através da História”, lançado há um ano, que “todo imigrante tem um espinho cravado em seu coração”, por ter de deixar sua terra, e por isso deve ser acolhido com amor, e não com hostilidade.
Outro ponto de discordância com as políticas do governo americano é o apoio dos Estados Unidos a Israel na guerra contra a Faixa de Gaza. Na tradicional mensagem de Páscoa Urbi et Orbis, lida pelo arcebispo Diego Ravelli, mestre das Celebrações Litúrgicas Pontifícias, o papa condenou o antissemitismo e também o que chamou de “a crueldade” dos bombardeios israelenses.
Em um mundo polarizado, Francisco teve de se defender de acusações contraditórias entre si. Por exemplo, a de ter colaborado com o regime militar argentino e a de ser “comunista”.
O papa afirmou que durante o regime militar (1976-83) protegeu pessoas perseguidas pela ditadura, mas evitou confrontos com o governo, porque eles dificultariam esse trabalho de proteção. Mas depois de assumir o pontificado, Francisco reconheceu que a Igreja argentina deveria ter feito mais para e opor à ditadura.
Por sinal, na sua autobiografia ele conta que sua primeira chefe, no laboratório de química em que ele trabalhou durante o ensino médio, uma comunista asilada da ditadura no Paraguai, foi fundadora do movimento Mães da Praça de Maio, que denunciava os desparecimentos na ditadura. E conta que ela exerceu influência intelectual sobre ele.
Por outro lado, o papa afirma: “Nunca fui comunista”, e condena os horrores do stalinismo, por exemplo. Ele lembrou uma passagem do Novo Testamento que conta que “os cristãos tinham tudo em comum”, que não havia propriedade entre eles, e argumentou que defender os pobres não é um valor comunista, mas cristão.
CNN Brasil
