“Combate à Covid-19 deixa outras doenças desassistidas e abre margem para colapso do SUS”

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“Em praticamente todos os hospitais de referência, esforços estão voltados ao combate à Covid-19. A orientação protocolar do Ministério da Saúde e de órgãos como o Conselho Federal de Medicina (CFM) é para que os grandes centros deixem leitos à disposição de pacientes afetados pelo coronavírus e suspendam procedimentos eletivos, classificados como não emergenciais, para quaisquer outras patologias.

Do outro lado da força-tarefa contra a pandemia, porém, o gargalo na fila de espera por procedimentos eletivos nessas unidades cresce e preocupa. Quando procuradas, as secretarias de saúde dos estados demonstram dificuldade em reunir os números e não souberam informar dados atuais. Mas um levantamento inédito feito pelo CFM, em 2017, mostrou que ao menos 904 mil pessoas permaneciam em filas para cirurgia eletiva no país. Dessas, muitas aguardavam há mais de 10 anos. Os números, no entanto, são subestimados, informou o próprio conselho, já que parte dos estados não forneceu ou não possuía dados compilados.

Para especialistas em gestão de saúde, o cenário futuro é pouco animador: além da demanda reprimida já conhecida, se somará o contexto de pandemia. Parte deles também teme que o quadro dos pacientes, hoje classificados como eletivos, possa escalar a um diagnóstico mais grave devido à demora para o atendimento.”

“É possível, dessa forma, que quando a força-tarefa contra a Covid-19 terminar, os sistemas público e privado de saúde não tenham suporte para atender à demanda agora reprimida.

Representantes de hospitais privados do Paraná têm dito que estão seguindo as orientações dos órgãos para a suspensão e que acreditam na “teoria do mal menor”, isso é, casos eletivos agora são menos importantes, mesmo com o possível prejuízo futuro.

Na tentativa de desafogar o atendimento reprimido, foi publicada a portaria nº 561 do Ministério da Saúde, que prevê, em caráter excepcional, que hospitais de pequeno porte recebam pacientes com demandas não relacionadas à Covid-19. Cerca de 15 mil leitos estão disponíveis. A previsão do governo é que o sistema de saúde sofra em abril sobrecarga devido ao pico de afetados pelo novo coronavírus.

No início desse ano, o Ministério da Saúde anunciou uma reserva de R$ 250 milhões como incentivo para “zerar” a fila de espera para 53 tipos de procedimentos cirúrgicos eletivos de média complexidade. Com a pandemia, porém, esse objetivo deixou de ser prioritário. Dados do Sistema Único de Saúde (SUS) revelam que em 2019 foram realizadas 2 milhões de cirurgias eletivas no país.

Sobrecarga de outras doenças
“Quando o coronavírus tiver sido controlado, o sistema de saúde sofrerá uma grande pressão por causa dos pacientes que não tiveram assistência — muitos, cujas doenças têm capacidade de matar”, prevê Alexandre Barbosa Andrade, professor adjunto de Clínica Médica na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e especialista em Clínica Médica pela Sociedade Brasileira de Clínica Médica.

Na análise de Andrade, o país está supervalorizando um lado do problema em detrimento de outro que “pode ser muito mais letal futuramente”. “Pacientes do SUS, principalmente, estão completamente desassistidos na atenção primária. Não há exames, eles não têm atendimento, não têm receita reavaliada, não têm cirurgia”, afirma Andrade.

A preocupação maior é com pessoas cujos problemas de saúde estão descompensados, pacientes com diabetes, doenças cardíacas e pulmonares, por exemplo. Há, além disso, diagnósticos de câncer que deveriam estar ocorrendo agora – a falta do parecer poderá permitir avanço da doença e tardar o início de tratamento.

Além desses casos, novas demandas devem surgir. Pesquisas também têm alertado para os impactos que o estado de quarentena pode provocar na saúde mental dos indivíduos. Segundo um estudo publicado na revista The Lancet, durante a epidemia de SARS, em 2002, 29% da população em isolamento apresentou sintomas de estresse pós-traumático, enquanto 31% tiveram depressão depois da reclusão.

Nessas curvas de epidemia, nas palavras do especialista, o Brasil passa a acreditar que “a Medicina possui uma única doença”. A distribuição irregular da infecção no país, para ele, seria outro motivo em prol da não suspensão geral dos procedimentos eletivos.

“Estamos com uma irregularidade de congestão do sistema de saúde. Muitos lugares não têm pressão por coronavírus no momento, mas estão vazios”, diz. “Segundo colegas de hospitais privados, alguns reduziram em 90% o atendimento de pronto-socorro, enfermarias estão completamente vazias. Mas, claro, que existem regiões com mais demanda, como São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas, Ceará”.

Informações divulgadas durante reunião com representantes da saúde em Minas Gerais dão conta de que o número usual de atendimentos em unidades de saúde, em média, era de 300 por dia. Agora, são atendidas no máximo 50 demandas diárias.

De acordo com Andrade, ainda, é preciso olhar para o que os dados revelam a respeito da letalidade do coronavírus no país. Um relatório do World Meters sobre o número de óbitos por milhão indica que, até o momento, o Brasil tem a média de 28 mortes a cada 1 milhão de pessoas; enquanto na Europa, a Itália chegou a registrar taxa de 302 óbitos a cada 1 milhão.

“Na América do Sul, pelo menos até agora, não vemos o coronavírus causando um colapso. Olhando para esse dado, que é real, não vemos explosão de mortalidade no Brasil. Estão tendo mais casos porque estamos fazendo mais testes, mas não vemos um aumento da mortalidade”, diz. “Os números da Itália geraram pânico em todo mundo. Mas nosso país tem características diferentes de perfil de população”.

José Carlos Campos Torres, mastologista e cirurgião oncológico feminino no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism) da Unicamp, informa que os atendimentos foram drasticamente reduzidos na unidade e teme o cenário futuro para pacientes oncológicos. “A expectativa é de que essas demandas acumulem quando tudo isso passar. Estamos fazendo de tudo para que a suspensão não prejudique os doentes oncológicos”, diz.

“Em muitos casos, é provável que a espera não provoque a morte do paciente — embora isso possa acontecer. O problema é que, quando ele vier, vai ocupar vaga de outro que poderia estar neste lugar. O serviço é uma roda, ele anda, mas quando chegar em agosto, vai estar sobrecarregado e poderemos não dar conta”, afirma Torres.

Entidades como a Associação Médica Brasileira (AMB) já falam em “segunda onda”: “Esse será o impacto do coronavírus sobre outras doenças. São as situações de pessoas que têm medo de ir para o hospital, estão com dor torácica, acabam infartando e morrendo em casa “, disse o vice-presidente da AMB, Diogo Sampaio, à Gazeta.

“Tenho informação de que esse número de infarto subiu em 30% durante a pandemia. Sem falar em suicídio, derrame, doenças oncológicas. Precisamos olhar para essas doenças também”, afirma. “Os implantes de marcapasso em São Paulo, por exemplo, estão praticamente zerados. E vão dizer que não existem pessoas precisando?””


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