Nem Tudo Se Desfaz é registro histórico sobre o Brasil da última década

“A gente pedia para ele dar uma nota de como estava. Ele dizia: cinco, seis, sete, estava quente ainda. Quando ele chegou ao hospital, na Santa Casa, foi levado direto à enfermaria e começou a esfriar. […] Eu cheguei na sala antes dele. Ele estava com os braços amarrados, urrava de dor, falava da filha o tempo todo… Vendo aquilo, eu comecei a perceber que… Será que meu pai vai?”

O relato acima é de Carlos Bolsonaro, visivelmente emocionado, com a voz embargada e quase às lágrimas. Arredio à imprensa, ele conversou com o cineasta Josias Teófilo, diretor de Nem Tudo Se Desfaz, documentário em exibição em São Paulo e outras capitais brasileiras, mas não falou investido do cargo de vereador pelo Republicanos do Rio, mas como filho mais ligado a Jair Messias Bolsonaro. O “zero dois” descreve, com riqueza de detalhes inédita, como foram os momentos seguintes à facada sofrida pelo então candidato à Presidência da República no dia 6 de setembro de 2018, em Juiz de Fora (MG), durante um ato de campanha. Esse é o ponto alto do novo filme de Teófilo, diretor do premiado O Jardim das Aflições (2017).

Nem Tudo Se Desfaz, no entanto, vai além, muito além de Bolsonaro. Alternando imagens recentes e trechos de clássicos do cinema dos anos 1920, entremeados por uma série de entrevistas com intelectuais, jornalistas, lideranças políticas, influenciadores e ativistas, o documentário joga luz sobre o turbilhão político que abalou o Brasil na última década.

Tendo como fio condutor a narração do ator e dublador Reynaldo Gonzaga — dono da voz que enunciava o slogan “Brasil, um país de todos” na propaganda oficial dos governos do petista Luiz Inácio Lula da Silva —, o filme traça um paralelo entre alguns dos momentos decisivos da vida nacional entre 2013 e 2018: as chamadas Jornadas de Junho, a eclosão da Operação Lava Jato, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, a prisão de Lula e o surgimento de Bolsonaro como personificação do espírito “revolucionário” e da contestação ao establishment.

Filme joga luz sobre o movimento de massas que ganhou força no Brasil a partir de 2013 | Foto: Redes sociais

Coube a Teófilo cumprir o papel que a grande imprensa e a academia não quiseram ou não tiveram capacidade de executar: interpretar, sem preguiça ou preconceitos, o movimento das massas que tomou as ruas do país e passou a reivindicar pautas diversas, participando ativamente da vida política do Brasil. Enquanto a intelligentsia tupiniquim se enclausurava nas próprias bolhas e desqualificava a multidão em verde e amarelo nas ruas (como continua fazendo, vide as manifestações de 7 de Setembro em apoio a Bolsonaro), o cineasta pernambucano de 34 anos foi a campo para observar, estudar e compreender o fenômeno.

“O grande tema do filme é o movimento das massas. Uma das principais referências da pesquisa que eu fiz antes de rodar o filme é o livro Massa e Poder, do Elias Canetti [Editora Companhia de Bolso, 2019]. O filme acompanha como as massas se movimentam. Isso é muito mais importante do que qualquer questão partidária. Não diria que é um filme político. É um filme histórico”, afirmou Teófilo em entrevista a Oeste publicada no dia 15 de setembro.

2013-2018

Com algumas imagens inéditas das manifestações de junho de 2013, Nem Tudo Se Desfaz mostra como e por que as jornadas que tiveram início a partir de protestos organizados pelo hoje já esquecido Movimento Passe Livre (MPL) — contra o aumento de 20 centavos no preço da passagem de ônibus em São Paulo — rapidamente se tornaram campo fértil para a participação de uma massa insatisfeita com a (falta de) qualidade dos serviços públicos, os escândalos de corrupção, a violência e outras mazelas do país.

Em um curto espaço de tempo, as manifestações cresceram exponencialmente, ganharam adesões pelo Brasil e fugiram do controle da esquerda mainstream do PT, alinhada aos interesses do governo Dilma. O então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o prefeito Fernando Haddad (PT) aparecem em uma entrevista coletiva na qual revogam o aumento e pedem diálogo e compreensão das massas — a imagem pode ser interpretada como um embrião do que se veria anos depois, uma simbiose entre tucanos e petistas, adversários históricos e hoje mais próximos do que nunca. Cinco anos depois, tanto Alckmin quanto Haddad fracassaram nas urnas.

À medida que as multidões avançavam, a classe política e sua representante número um, a presidente da República, se sentiam cada vez mais acuadas. Imagens históricas de centenas de manifestantes na Praça dos Três Poderes ameaçando invadir o Congresso Nacional são quase o símbolo do fim — e do início — de uma era.

Um dos méritos de Teófilo em Nem Tudo Se Desfaz é não ter se limitado ao ponto de vista dos conservadores sobre a realidade política do Brasil daquele momento. Dois dos principais entrevistados no filme são notórios representantes do pensamento da esquerda: o escritor, historiador e professor de literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) João Cezar de Castro Rocha e o crítico cultural Idelber Avelar. Segundo este último, a total “incapacidade do governo Dilma de oferecer todas aquelas respostas” à sociedade só fez amplificar a magnitude das manifestações e, naturalmente, tornar a situação do governo petista insustentável.

R OESTE

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