Cair na real vai além do Plano Real

Cair na real, ou seja, encarar a realidade nos seus aspectos mais complexos não é algo simples, como ter dela uma imagem fotográfica. Está mais para assistir a um filme de muito longa metragem.

As recentes comemorações dos 30 anos do Plano Real têm merecido uma série de seminários técnicos, entrevistas com os principais economistas da época e outras justas celebrações. Dentre eles, Pedro Malan, Armínio Fraga, Edmar Bacha e Gustavo Franco têm apontado aspectos importantes para o sucesso do plano e preocupações quanto ao futuro do controle da inflação.

Sem desmerecer as homenagens atuais, ressalto que o sucesso do plano veio do amadurecimento de um processo cuja origem deve ser buscada alguns anos antes, quando a preocupação com a inflação já havia se tornado o maior problema nacional, atingindo seu ápice em janeiro de 1990, quase ao final do governo Sarney, com incríveis 89% ao mês.

Naquela ocasião, eu era Diretor de Planejamento e Engenharia, mas estava respondendo interinamente pela presidência da Eletrobras, o que me obrigava a frequentes contatos com o alto escalão ministerial em Brasília. Lá, os órgãos institucionais funcionavam de forma muito precária e, na contingência de reajustar as tarifas de energia elétrica quatro vezes por mês, meu único interlocutor confiável era o Ministro General Ivan de Souza Mendes, que se articulava com o Ministro Maílson da Nóbrega. Havia uma pressão para que Sarney, seguindo o exemplo de Raúl Alfonsín, na Argentina, entregasse o governo ao seu sucessor antes do fim do seu mandato.

O processo inflacionário vinha de longe e havia vitimado Lucas Lopes, Ministro da Fazenda, quando este quis evitar os estouros orçamentários causados pela construção da nova capital, Brasília. Logo após o golpe de 1964, Ayrton Aché Pillar, antigo negociador da dívida externa e funcionário exemplar do Ministério da Fazenda, que havia sido nomeado diretor da Caixa de Amortização (naqueles tempos ainda não havia sido criado o Banco Central), tentou demover Otávio de Bulhões da ideia de lançar as ORTNs e indexar toda a economia, algo que os clássicos, que ele seguia, rejeitavam. Derrotado, Ayrton exonerou-se. Talvez a indexação, naquele momento, tivesse sido uma boa solução caso interrompida um par de anos depois, mas o que se viu foram os abusos cometidos por meio da sua progressiva extensão, o que resultou na espiral inflacionária cuja imagem mais difundida era a do “dragão da inflação”.

Quando o Presidente Collor tomou posse e anunciou o Plano Cruzado, divulgou o conceito da “bala de prata”, a tacada com a qual esperava matar o dragão de uma só vez, menosprezando o caráter que a inflação já havia adquirido de doença crônica a ser combatida ao longo do tempo até ser extirpada do organismo econômico e social. Com a compulsória retenção das poupanças dos brasileiros (ainda que integralmente devolvidas na gestão de Marcilio Marques Moreira), a opinião pública se ressentiu.

Com Marcílio e sua equipe, em grande parte participante da implantação do Plano Real, a abordagem correta veio, então, a ser empregada, conforme se viu na redução dos índices inflacionários do período.

Com o Presidente Itamar Franco, engenheiro de formação, Paulo Haddad e, especialmente, Elizeu Rezende, a preocupação em reestabelecer o equilíbrio entre os preços relativos dos produtos essenciais, inclusive petróleo e energia elétrica, foi conseguida, e Fernando Henrique Cardoso, com a brilhante equipe que reuniu, deu continuidade ao processo de equilíbrio orçamentário, reformas econômicas e instalação de agências regulatórias para controle técnico dos preços públicos, basicamente estruturando o tríplice controle de metas de inflação, câmbio flutuante e equilíbrio fiscal, ao lado da redução de gastos públicos e impulso às privatizações. Cabe registrar, dentre os esquecidos nesta hora de comemorações, Rubens Ricúpero e Ciro Gomes, que deram continuidade às medidas preconizadas por seus antecessores porque, como homens públicos, têm a clara noção que as construções permanentes demandam às vezes algumas décadas. Em seu livro “A Diplomacia Na Construção do Brasil”, Ricúpero mostra bem isso, assim como hoje, ao vermos o modelar progresso da educação no Ceará, devemos lembrar que, na origem, estão os governos de Tasso Jereissati e Ciro Gomes.

Armínio e Malan ressaltam em suas entrevistas que, embora a meta de inflação e o dólar flutuante tenham sido razoavelmente aceitos pelo senso comum como fatores desejáveis, a população, com o incentivo de maus e ignorantes políticos, tem se recusado a conferir o mesmo reconhecimento a importância de se atingir o equilíbrio fiscal.

Esses fatos fazem com que a inflação, embora não mais o dragão do passado, tenha se transformado em uma lagartixa que se recusa a morrer, pois o desequilíbrio fiscal que leva a juros elevadíssimos inibe os investidores, que preferem aguardar melhores momentos concentrando seus capitais em aplicações financeiras e em ambientes com menores riscos futuros.

A tarefa de sair do impasse atual é muito mais fácil do que o desafio que a sociedade e os políticos enfrentaram no passado. O Presidente Itamar Franco, em um momento extremamente complexo, sem maioria no Congresso, deu o seu apoio a Fernando Henrique Cardoso como Ministro da Fazenda e este soube conduzir, mesmo não sendo economista, o processo que levou o Brasil a se livrar de quase cinco décadas da doença crônica.

É incrível como interesses menores, teses erradas e oportunismo político de curto prazo vêm destruindo as bases daquela importante conquista do passado. Assiste-se o desequilíbrio dos preços relativos de energia, a poluição do funcionamento das agências reguladoras, a desconsideração de compromissos internacionais e a própria insidiosa corrupção, mostrando seus sinais através de escândalos pontuais e coincidências suspeitas.

O Presidente Luís Inácio deve refletir sobre a grande oportunidade que ainda tem de entrar na história como o restaurador da nossa ordem econômica, sem a qual não conseguiremos a maior geração de bons empregos, correção de desigualdades sociais e o desenvolvimento sustentável do Brasil.

José Luiz Alquéres é vice-presidente do IHGB-Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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