A grande farsa contra a cloroquina

Estudo que rejeita uso de hidroxicloroquina em pacientes de Covid-19 não é ciência, mas instrumentalização da ciência

O crepúsculo do quinino

Um estudo publicado na prestigiada revista científica The Lancet, no último dia 22, parecia mudar definitivamente os rumos do debate público sobre o uso da cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento dos sintomas da Covid-19.

Comandado por Mandeep Mehra, indiano especialista em doenças cardiovasculares que leciona em Harvard, EUA, e tem 5 mil citações no currículo, o estudo coletou mais de 96 mil amostras de pacientes contaminados com o coronavírus, dos quais cerca de 15 mil foram submetidos a algum tipo de tratamento com o antimalárico — seja isoladamente ou em associação com macrolídeos, como a azitromicina.

Comparando os resultados dos 15 mil pacientes submetidos a algum tipo de tratamento com cloroquina e hidroxicloroquina com os 81 mil que não usaram nenhuma combinação dessas drogas, a conclusão foi arrasadora:

Não fomos capazes de confirmar um benefício no uso hospitalar da cloroquina ou hidroxicloroquina em pacientes diagnosticados com a Covid-19, quer usadas isoladamente quer em associação a um macrolídeo. Cada um desses tratamentos foi associado tanto com uma queda no número de recuperados, quanto com um aumento dos casos de arritmia ventricular.

Trocando em miúdos: cloroquina faz mal.

Com base neste resultado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou que nem vai iniciar um estudo clínico envolvendo cientistas de 100 países sobre a eficácia do tratamento com a cloroquina e hidroxicloroquina, como estava planejado.

O martelo estava batido: cloroquina não presta. A ciência parecia ter dado o seu veredicto.


Nota sobre o método científico

No entanto, sabemos que não existe veredicto da ciência, como se pudéssemos considerar a ciência um monólito unívoco e uníssono que sai alardeando verdades incontestáveis. No mundo real o que existe é a palavra daquele cientista particular, ou, no máximo, daquele grupo de cientistas. Todavia, mesmo o grupo de cientistas, por vasto e multifacetado que seja, nunca é a ciência encarnada. É sempre um grupo, grupo que poderá ser contestado e eventualmente refutado por outros cientistas particulares ou por outros grupos, menores ou maiores.

Quer dizer, a ciência sempre progride por confrontação dialética, não por exclamações que ganham aparência de necessidade apodítica simplesmente pelo número de vozes que as gritam ou pelo órgão internacional que lhes serve de megafone.
 

A politização da pandemia

Pois o estudo do Dr. Mehra foi posto na mesa de discussão e muitos pesquisadores de vulto têm declarado que por sua metodologia ele é praticamente inútil — pelo menos para aferir o objeto a que se propôs.

Uma dessas contestações veio do Brasil.

Representante de um grupo de 300 cientistas, 25 dos quais assinaram uma carta aberta aos, segundo dizem, pseudocientistas que estão politizando a pandemia, o laureado químico Marcos Eberlin — que tem mais de 25 mil citações em artigos acadêmicos — concedeu uma entrevista ao jornal francês Frances Soir para expor suas impressões sobre o estudo. Na conversa, Marcos foi taxativo:

“Quando recebemos a publicação da The Lancet, do professor Mehra, ficamos chocados. Primeiramente tentamos entender os méritos do estudo, mas muito rapidamente o grupo percebeu que aquilo foi um esforço para desacreditar a hidroxicloroquina e a terapia dupla [Terapia dupla é como ficou conhecida a terapia combinada de hidroxicloroquina e azitromicina concebida e administrada pelo aclamado virologista francês Didier Raoult, médico e pesquisador que soma mais de 150 mil citações em artigos científicos]. (Grifo meu.)

E prosseguiu:

Analisamos a pesquisa e todos os 300 foram compartilhando o trabalho. Tudo nos parecia questionável: a metodologia, a amostragem, os métodos estatísticos utilizados. Por exemplo:

* a dosagem de hidroxicloroquina administrada (1,2 g) [Dosagem considerada letal segundo o alerta do Dr. Paolo Zanotto, virologista da USP com 7,5 mil citações. Vale ressaltar que essa dosagem foi a mesma que ocasionou uma série de mortes num experimento no estado do Amazonas];

* a seleção não foi aleatória [Quer dizer, não foi um teste randomizado, como o próprio Dr. Mehra admitiu em entrevista para o mesmo France Soir. Disse ele: ‘O conjunto de pacientes representa uma população bastante homogênea e, para ser completamente honesto com você, aplicamos todos os princípios da pesquisa científica para conduzir um estudo mais próximo de um ensaio clínico randomizado. Mas ainda seria muito pouco científico da minha parte dizer que este é um estudo clínico randomizado porque não é. E nunca saberemos se perdemos certos fatores ou efeitos’. O teste randomizado é o mais indicado para avaliar a eficácia de uma terapia farmacológica];

* os pacientes receberam a hidroxicloroquina mesmo tendo problemas cardíacos, o que não podia ser feito. É um erro médico grosseiro dar esse medicamento a pacientes que sofrem de problemas cardíacos;

 o estudo deu a entender que os pacientes observados haviam acabado de ser diagnosticados quando receberam tratamento dois dias depois de irem ao hospital; mas na verdade fazia dez dias que eles já tinham o Covid-19”. [Os entusiastas do uso desses fármacos para pacientes contaminados com o vírus chinês afirmam que a eficácia está justamente no tratamento precoce, iniciado nas primeiras 48h depois que o paciente começou a apresentar os sintomas. Ora, se o paciente precisou ficar internado, é porque já estava com a doença em estado avançando, e, em pacientes assim, todos os especialistas concordam, o tratamento com a hidroxicloroquina é mesmo pouco ou nada eficaz];

E conclui:

A ciência médica exige que todos esses fatores sejam levados em consideração. Isso não é ciência, é uma instrumentalização da ciência. Todos ficamos chocados porque é isso que destrói a reputação da ciência”.  

Para Eberlin, todas essas distorções ou ambiguidades se explicam por uma politização da pandemia, politização que estaria maculando o debate científico. Dando como exemplo o caso brasileiro, ele afirma que há uma clara relação entre, de um lado, os que apoiam o presidente Bolsonaro e por consequência apostam na cloroquina, e, do outro, os opositores do mandatário, grupo que luta dia e noite para descredibilizar o remédio. 

Há, também, de acordo com o cientista, uma disputa de interesses na indústria farmacêutica:

“Além da parte política, conseguimos vincular este estudo a grandes laboratórios farmacêuticos. Um membro do grupo acabou de me falar sobre vínculos entre uma empresa de ‘respiradores’ e gente que contribuiu para este estudo”.


Na terra dos cangurus

Afora as reações de cientistas de várias partes do mundo, como o próprio Dr. Raoult e pesquisadores da Columbia University, o estudo de Mehra se envolveu numa polêmica por incompatibilidade de dados.

Nesta quinta-feira (28), uma reportagem do jornal britânico The Guardian mostrou que autoridades sanitárias da Austrália contestaram os dados de mortos por Covid-19 assinalados na pesquisa.  Enquanto o trabalho alega que até 21 de abril 73 australianos foram vitimados pela Covid-19, os dados da Johns Hopkins University dão conta que até aquele dia o número de óbitos estava na marca de 67 pessoas.

Depois disso, o Departamento Federal de Saúde da Austrália confirmou a incongruência e afirmou que os pesquisadores não tomaram como fonte as informações do Sistema Nacional de Notificação de Doenças. Na mesma linha, hospitais das duas localidades mais afetadas pela pandemia, Vitória e Nova Gales do Sul, atestaram a mesma incompatibilidade nos números do Dr. Mehra e sua equipe.

Consultada pelo periódico inglês a The Lancet declarou: 

“Nós pedimos esclarecimentos aos autores. Sabemos que eles serão urgentemente investigados e aguardamos suas respostas”.

Em resposta, o Dr. Sapan Desai , um dos autores da pesquisa [não encontrado no Google Scholar], disse que os números foram tirados de um coletor de dados que ele mesmo fundou, o Surgisphere.  A justificativa para o erro, anunciada pelo próprio Dr. Desai, é que os dados de um hospital asiático foram equivocadamente adicionados às estatísticas australianas.

A isto, o Dr. Allen Cheng, importante epidemiologista de Melbourne, Austrália, — com cerca de 16 mil citações — questionou:

“Se eles erram nisto, o que mais não poderia estar errado?”

Ademais, o Dr. Cheng questionou o número reduzido de pesquisadores, apenas quatro, envolvidos num trabalho tão vasto e complexo como este:

“Geralmente nos estudos que investigam milhares de pacientes, vê-se uma larga lista de autores… Múltiplas fontes são necessárias para coletar e analisar os dados para um estudo mais amplo, e geralmente vemos esse reconhecimento na lista de autores”.    

Cheng ainda acrescentou que seria um erro interromper abruptamente os testes clínicos com a hidroxicloroquina.

Conclusão

Foi com base neste estudo no mínimo questionável que a Organização Mundial da Saúde, órgão que tem sido duramente criticado por chefes de Estado, como Trump e Taro Aso, vice-primeiro-ministro do Japão, por conta de suas posições reiteradamente favoráveis à China, induziu vários países a descartarem o tratamento com a cloroquina.

É isto que os debatedores públicos estão defendendo como seriedade científica contra o obscurantismo negacionista.

 Adendo tupiniquim

Enquanto isso, o Conselho Nacional de Saúde brasileiro, sob o comando do militante petista Fernando Zasso Pigatto, está recomendando como tratamento à peste: terapias com florais, homeopatias, reiki e acupuntura.

O Conselho Nacional de Saúde é contra o uso da cloroquina.

Brasil sem medo

Últimas Notícias